A gravidez e o parto são eventos naturais e fisiológicos que, por se traduzirem numa condição de vulnerabilidade para a pessoa grávida, carecem de protecção legal. Os direitos na gravidez e no parto são, sobretudo, direitos humanos.
O ordenamento jurídico português tem acompanhado a tendência de legislar sobre este assunto, tendo a Lei no 110/2019, de 9 de Setembro, vindo acrescentar um "regime de proteção na preconceção, na procriação medicamente assistida, na gravidez, no parto, no nascimento e no puerpério" à Lei no 15/2014, de 21 de Março - que consolida a matéria de direitos e deveres dos/as utentes dos serviços de saúde.
Em síntese, respeitar os direitos na gravidez e no parto significa respeitar estes momentos enquanto eventos naturais e fisiológicos, respeitando a autodeterminação das grávidas, parturientes e puérperas, nomeadamente o direito ao consentimento informado. Porém, o modelo de obstetrícia em Portugal, que entende a gravidez e o parto como eventos patológicos que carecem de intervenção clínica, é um modelo de opting out, em que as intervenções se encontram protocoladas, em que nem sempre são apresentadas opções às grávidas e em que o consentimento informado não é política orientadora da relação entre as grávidas e os/as profissionais de saúde. Assim, uma grávida que determine antecipadamente que não consente determinados procedimentos por rotina, deverá elaborar um plano de parto (direito consagrado no art. 15o-E, no 1, da Lei no 15/2014, de 21 de Março) em que expressa as suas preferências e em que antecipa o seu consentimento ou dissentimento relativamente a práticas clínicas protocoladas, muitas delas sem qualquer fundamento científico para gravidezes de baixo risco.
A Lei no 15/2014, de 21 de Março prevê, entre outras disposições, que "os serviços de saúde devem seguir as recomendações da Organização Mundial da Saúde para uma experiência positiva do parto" (art. 15o-F, no 6). Ora, estas recomendações da OMS - actualizadas em Fevereiro de 2018 -, listam aquelas que são as intervenções mais comuns em obstetrícia, categorizando-as como "recomendadas" ou "não recomendadas" para partos de baixo risco, justificando a categorização através de evidências científicas. Vejamos, a título de exemplo, o caso da episiotomia - corte cirúrgico realizado no períneo, com vista a abreviar o período expulsivo do nascimento - que não é recomendada pela OMS e que continua a ser uma intervenção feita sem critério na maioria dos hospitais portugueses .
Esta lei prevê, igualmente, o direito à liberdade, autonomia e autodeterminação; o direito da grávida a não ser coagida; o direito à informação, ao consentimento e à recusa informada; e o direito ao respeito pelas suas escolhas e preferências. Tais disposições legais, que enformam os princípios orientadores deste regime de protecção, resumem e reforçam direitos já consagrados, mas que não têm sido aplicados nestas situações específicas da gravidez, do parto, da perda gestacional e do puerpério.
Pode considerar-se que a Lei no 15/2014 de 21 de Março, na sua redacção actual, é um passo na prevenção da violência obstétrica , revelando-se, contudo, insuficiente na medida em que não prevê um regime sancionatório para os/as profissionais de saúde que incumprem estas normas legais. Do incumprimento do referido diploma legal, poderá resultar responsabilidade civil contratual ou extracontratual, com a respectiva obrigação de indemnizar a pessoa lesada; e responsabilidade penal, se os factos em apreço consubstanciarem a prática de um crime.
Importa, ainda, compreender que estes direitos não estão integralmente conquistados, o que ficou claro com a chegada da pandemia, em que as administrações hospitalares aplicaram medidas restritivas nos blocos de partos, sem respaldo legal, contrariando as boas práticas clínicas, as recomendações da OMS e as evidências científicas. Urge, por isso, discutir a temática dos direitos na gravidez e no parto, não só à luz da ciência, como à luz do Direito.
Mia Negrão
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